Dizem – pode ser lenda urbana,
pode ser a força de imaginação carioca –, dizem, na esquina das ruas Farnese e
Mont’Alvere, que o morro é urbanizado assim porque Getúlio Vargas tinha uma
amante na Rua Deolinda.
A confirmar.
O Morro do Pinto é o da música do
Geraldo Pereira, aquele em que o Escurinho – depois de ir ao Morro da Formiga
procurar intriga, ir ao Morro do Macaco pra bater num bamba –, no final de seu
périplo sincopado pelos morros do Rio, o Escurinho malemolente vai ao Morro do
Pinto acabar com o samba.
Pois eu, que não sou esse
escurinho todo e quero mais que o samba peça passagem e vá em frente – eu tenho
ido ao Morro do Pinto, no Cais do Porto, no intervalo de um jogo e outro da
Copa. Vagueio sem rumo, na esperança de relaxar a hemoglobina e apascentar as
hemácias, essas senhoras sanguíneas que me têm sido tão cruéis. Flano ao léu,
zero o QI, os olhos cheios de uma cidade que poucos conhecem.
Há quem enfrente a fila do
bondinho do Corcovado para lá de cima observar a Zona Sul. Nada contra, mas
quem ainda não colocou o cenário como pano de fundo num selfie do Instagram?
Eu tenho preferido entrar pela
Rodoviária, pegar o Santo Cristo, subir a Rua Sara, atravessar a esquina com a
Orestes, galgar a escadaria da Carlos Gomes, dobrar à direita na Rua do Pinto,
entrar no Parque Machado de Assis e ficar lá de cima, embasbacado com o que vai
embaixo – o avesso de um cartão postal que o mundo inteiro vem ver e a própria
cidade desconhece. No canto esquerdo do olho, o prédio da Central; no direito,
as antenas do Sumaré; no meio, 450 anos de história.
O Morro do Pinto é um daqueles
paraísos que o carioca desperdiça diariamente, preguiçoso de sair do seu
quarteirão e descobrir que a cidade é maravilhosa não só por causa das curvas
do Aterro, das curvas das garotas e das curvas das pedrinhas no calçadão. O Rio
não entende o Rio, acha que isso aqui é só sal, sol e sul. Faz a curva no fim
do calçadão do Leblon e volta para casa, crente que viu tudo o que interessa.
Eu lamento a falta de curiosidade
do carioca ixperto, sempre nos mesmos engarrafamentos humanos e águas de coco,
mas não perco tempo com isso. Sigo no caminho que mestre Jaguar ensinou, o de
ir na contramão do turismo e das multidões, rumo ao âmago do lepo-lepo, ao fundo
do BIP-BIP, a Busca Insaciável do Prazer.
Troto ladeira acima do Morro do
Pinto, vizinho do Morro da Conceição e da Providência, feliz como cabrito que
foge do zôo congestionado das calçadas da Zona Sul. Passo pela esquina do bloco
Pinto Sarado, cruzo com a arquiteta Bel Lobo, que tem um ateliê na fábrica da Bhering,
e paro no hambúrguer do Omar, o Troisgros local.
Da varanda, cercado pelo canto
dos galos, eu agora escorrego a vista por uma outra região da cidade, e varro as
chaminés de São Cristóvão, os guindastes do cais do porto, as torres da Igreja
da Penha e, nos dias mais claros, a unha rochosa do Dedo de Deus. Alguém na
mesa ao lado conta a incrível história do bandido Zé Piroca, morador da Rua
Sara, o soldado maluquete que um dia subiu o morro pilotando um tanque roubado
do quartel da Quinta da Boa Vista.
Pode ser lenda urbana, mais uma
conversa de bar, mas é disso também, de adoráveis assombrações, que se faz uma
cidade. Fato indiscutível é que foi derrubada a casa do Seu Normando, na Rua Deolinda,
onde, nos anos 70, Zeca Pagodinho e Beth Carvalho abriam a roda.
Os mais viajados vão achar que
estão subindo as ladeiras da Alfama, o bairro de Lisboa – e há bandeiras de
Portugal nas janelas, memória evidente de que antes de Getúlio, antes do
Escurinho, o Morro do Pinto foi ocupado pelos portugueses no século XVIII. Eu,
com menos milhagens, acho que estou de volta ao subúrbio, a uma foto do Malta
ou a um maxixe do Sinhô. “Isso aqui é o melhor lugar do Rio para se criar
marreco” – diz um morador, numa tradução ao carioquês de que ali há paz.
Eu respondo com um “amém”, passo
pelo coreto da Igreja de N.S. de Montserrat, peço contrito que tudo fique como
está e mais adiante, ainda na Rua Mont’Alverne, dou um tempo no Bar do
Carlinhos para ouvir o compositor local Carlos Gomes de Oliveira. Ele canta, de
sua autoria, conforme atesta documento lavrado em cartório, o samba “Para pegar
o caranguejo é preciso molhar a mão na lama”. Ao fundo, na gaiola, um papagaio parece
gritar disparates contra a especulação imobiliária que, alimentada pelas obras
do Porto Maravilha, começa a subir o Pinto.
Para não dizer que fui ao morro e
perdi a Copa, de um dos mirantes vê-se o Maracanã. E ainda conto mais sobre o
grande torneio internacional que nos acomete: nos anos 1980, em uma das
fundições da Rua Capiberibe, outro maluco do bairro, o Peralta, derreteu a Taça
Jules Rimet, roubada com dois comparsas.
Não é uma história muito edificante em meio a tantas
ladeiras gloriosas – mas este é o Morro do Pinto. A Taça do Mundo acaba aqui.
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