Nuvens suburbanas sobre o céu de Ipanema

*reportagem publicada no dia 04 /11/1984, no Jornal do Brasil.

Ipanema, essa senhora cada vez mais gorda e poluída, reclama de novas estrias e dentes cariados em seu corpanzil: agora é culpa dos ônibus Padron, a linha 461 que, há um mês, traz suburbanos para seu "paraíso", numa viagem de apenas 20 minutos, via Rebouças. É o que dizem seus moradores, inconformados. Ouçam só:
“Que gente feia, hein?!” (Ronald Mocdes, artista plástico, morador da Garcia D`Ávila, bem em frente ao ponto do ônibus).
“No outro dia eu saí da loja com um vestido comprido, alinhado, e você precisava ver o que aconteceu. Me chamavam de urubu, um horror.” (Débora Palmério Fraga, gerente da Gregorio Faganello).
“É chocante dizer, mas eles estão desacostumados com os costumes do bairro. Nem vou mais à praia aqui. É farofeiro para tudo quanto é lado, olhando a gente de um modo estranho. Ficam passando aquele bronzeador. A sensação é de que eles estão invadindo o nosso espaço.” (Maria Luiza Nunes dos Santos, ex-freqüentadora da praia da Garcia D`Ávila e que agora só vai ao Pepino).
“Desse jeito o verão vai ser um faroeste.” (César Santos Silva, proprietário da lanchonete Chaika, na Visconde de Pirajá).
Os comerciantes estão se organizando e já despacharam diversos abaixos-assinados aos gabinetes de Leonel Brizola, de Jaime Lerner (o secretário que inventou a linha de ônibus), ao Detran, a todos que eles julgam com poderes para erradicar o mal. Reclamam também do inferno que se formou no trânsito. Ouçam mais:
“Depois das 17 horas a minha vitrine fica escondida atrás de uma fila enorme de passageiros. É claro que as clientes ficam bem inibidas de atravessar no meio daquela gente toda.” (Doris Serfaty, da butique Carla Roberto, na Rua Vinicius de Moraes. Ela está lançando a moda que deixa o sutiã à mostra).
“A rua é muito apertada e, quando o ônibus pára, interrompe o tráfego no bairro inteiro. Só dá ele na rua. Fica uma buzinação de louco. Além disso ele é muito pesado, e o asfalto está cedendo. Tem que botar ele para fora da área do comércio.” (Luli Beviláqua, da loja Luli R).
Há muito tempo que Luli não freqüenta a praia de Ipanema, preferindo as delícias mais calmas e limpas da Barra da Tijuca. Mas, definitivamente, já não há qualquer gueto de sofisticação sobre nossas areias, lamenta. Pois até a Barra está sendo cortada por outra linha do Padron, diretamente de Madureira. Na praia de domingo passado, Luli já sentiu a diferença.
“A praia mudou de cor. Eu fico ali no Farol da Barra, junto com o pessoal que pega wind. Apareceram umas caras inteiramente novas. Um cara estendeu a toalha, deitou e dormiu o tempo todo. Nunca tinha visto isso.”
Os moradores de Ipanema sugerem que o Padron faça seus pontos no Jardim de Alá, na Praça General Osório, na Henrique Dumont, na Epitácio Pessoa, locais mais amplos, onde não causam qualquer dano ao fluxo do trânsito. E que a polícia, o 19º Batalhão, dê blitzen constantes no bairro. Eles acham que, se continuar do jeito que está, Ipanema no verão vai ser notícia não pelo biquíni enroladinho ou pelo sutiã exposto.
“No sábado um sujeito desses ônibus sentou em sua cadeirinha de praia dentro da minha loja para aproveitar o ar refrigerado, enquanto esperava a condução. Tive que chamar os seguranças da rua. Quando chegou na segunda-feira fui abrir os cadeados da porta e não consegui. Os farofeiros tinham entupido tudo com areia e papel. Precisei serrar.”(Dono de uma sofisticada loja de decoração na Visconde de Pirajá, que não se identifica com medo de represálias).
“São grupos enormes, sempre gritando, fazendo bagunça e puxando os cordões de quem passa. Estão criando um cenário de vandalismo e terror. Os moradores por aqui estão assustados.” (César Santos Silva, Chaika).
“Os passageiros na fila ficam olhando aqui para dentro de um jeito mal-encarado. As freguesas comentam com a gente: "Que horror!" No outro dia tinha um mal-encarado que ficou no ponto um tempão, sem pegar os ônibus. Como estava com a mão enrolada pensamos até que tivesse uma arma dentro. Chamamos a policia. Viver nesse clima não dá. Essa é a rua das melhores boutiques do Rio. Onde é que estavam com a cabeça quando botaram um ponto de ônibus suburbano aqui?” (Cristina Campos, vendedora da Spy and Great, em frente ao ponto da Garcia D`Ávila).
Os depoimentos se sucedem, falam de churrasqueiras na praia, de bóias de pneus, do trânsito emperrado atrás das enormes traseiras dos Padron. Para que tudo melhore há tanto os que sugerem a mudança dos pontos, a retirada dos ônibus, mais polícia nas ruas, assim como mais educação. Mas pedem pressa. Pois o verão está aí e antes dele o Natal, mês que vem.
“A gente paga imposto tão caro para eles botarem essa pobreza na porta da gente. parece até a Central do Brasil. De vez em quando a gente passa por eles e grita "Japeri". Eles ficam chateados.” (Ronaldo Mocdes, artista plástico).
“Fica essa negrinhagem aí na porta...” (Cristina Campos, vendedora da Spy and Great).
“Quem tem um nível melhor já está procurando outra praia que não seja Ipanema. Eles não têm classe, não têm educação. Eu sei que a praia é pública, mas é horrível. No outro dia eu estava na praia conversando com a minha irmã, dizendo como os suburbanos são horríveis. Uma suburbana reclamou, mas eu nem dei conversa. Vê se eu vou me misturar.” (Sonia Barletta, moradora da Rua Vinicius de Moraes).
“Eles têm direito de ir à praia, mas podem ir de maneira organizada. Ou senão ficar na praia deles, em Ramos. O governo podia fazer também um lago artificial pra eles lá no subúrbio “(Maria Luiza Nunes dos Santos, vendedora da Faganello).
“O turismo vai ser prejudicado, você vai ver. Ou você acha que o pessoal do Caesar Park vai querer se misturar com eles, suas bananas, piquenique. Pode parecer elitista, mas não é não. Os suburbanos atrapalham.” (Débora Palmério Fraga, gerente da Faganello).
“É o fim da picada, Ipanema acabou. Na praia ficam agora uns homens gordos passando bronzeador na barriga branca, aquelas cenas de amor de suburbano. Na minha porta é trocador assobiando, uma multidão sempre, gente feia mesmo. Não dá nem pra sair mais com os meus cachorros.” (Ronald Mocdes, artista plástico, acariciando seus cachorros da raça Saluky, de nomes Tramp e Chivas).
“Au, au, au.” (Tramp e Chivas).

Comentários

  1. Pensam a mesma coisa hoje em dia e não estão errados. Porém, na década de 80 as pessoas eram menos hipócritas.

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